Durante anos, os endereços IP foram vistos como identificadores fiáveis para localização, segurança e monitorização online. Mas essa era já terminou. A explosão da Internet e a escassez de endereços IPv4 transformaram o que antes era uma ligação pessoal num verdadeiro labirinto digital onde um único IP pode esconder milhares de utilizadores diferentes.
Essa prática — conhecida como Carrier-Grade Network Address Translation (CGNAT) — está a gerar um caos silencioso na Internet. Mecanismos de segurança que bloqueiam IPs “maliciosos” acabam, sem saber, por castigar milhares de inocentes, especialmente em regiões em desenvolvimento onde a partilha de IP é uma necessidade, não uma escolha.
O lado oculto do CGNAT: desigualdade digital e discriminação invisível
A Cloudflare expôs recentemente como o uso massivo de CGNAT está a criar um viés socioeconómico na Internet. Nos países mais pobres, onde há menos endereços disponíveis, um único IP pode representar centenas de utilizadores. Enquanto isso, na Europa, América do Norte e Austrália, cada utilizador tem, muitas vezes, o seu próprio endereço. O resultado é chocante: os países com menos recursos acabam por sofrer bloqueios e limitações injustas, amplificando a desigualdade digital global.
Um mapa mundial revela o abismo: África e o Sul da Ásia brilham com tons de alerta, representando as zonas onde mais pessoas são forçadas a partilhar o mesmo IP. Já nos EUA, Canadá e Europa, o luxo digital continua intocado.
CGNAT: a solução temporária que se tornou permanente
A origem deste fenómeno é simples — e preocupante. O IPv4, com apenas 4,3 mil milhões de endereços, esgotou-se há mais de uma década. O IPv6 era a solução, mas a sua adoção lenta levou os ISPs a improvisar com o CGNAT: um truque técnico para fazer parecer que há mais endereços do que realmente existem.
Mas o preço é alto. Quando um ISP coloca milhares de clientes atrás de um único IP, qualquer ação maliciosa de um só utilizador pode levar ao bloqueio de todos os outros. E, como o CGNAT é imposto pelos operadores, a maioria das pessoas nem sabe que está “presa” nesse sistema.
Mesmo as normas técnicas internacionais, como os RFCs 6269 e 7021 da IETF, alertam há anos para os riscos desta tecnologia. E ainda assim, a sua utilização cresce a cada dia, transformando a Internet num campo minado de equívocos digitais.
Inteligência artificial ao resgate: a Cloudflare deteta CGNATs escondidos
Para combater o problema, a Cloudflare desenvolveu uma ferramenta de deteção global de CGNAT baseada em machine learning. A empresa construiu um modelo que distingue IPs de CGNAT, VPNs, proxies e IPs individuais, com uma precisão impressionante de 98%.
Através de traceroutes distribuídos, análises WHOIS e registos PTR, os investigadores conseguem detetar padrões típicos de redes com CGNAT — desde o uso de faixas de endereços partilhados até ao comportamento anómalo de tráfego. O resultado é um retrato alarmante do estado atual da Internet: mais de 200 mil IPs confirmadamente associados a CGNATs em todo o mundo.
Quando a segurança castiga os inocentes
Os dados são claros: os utilizadores por trás de CGNATs são três vezes mais propensos a sofrer limitações e bloqueios automáticos, mesmo quando o tráfego é legítimo. O sistema identifica falsos positivos, interpretando tráfego humano como potencialmente perigoso — uma injustiça digital que atinge sobretudo utilizadores de países com menos recursos tecnológicos.
Embora a Cloudflare tenha aperfeiçoado os seus sistemas de deteção de bots, o problema mantém-se generalizado noutras plataformas e serviços. Os filtros de segurança baseados em IP estão a falhar, punindo populações inteiras por causa de um único comportamento suspeito.
África em destaque: a face mais visível da partilha extrema
Os resultados do estudo são chocantes: os ISPs africanos apresentam o maior número de clientes por IP do planeta. Não só dependem mais de CGNAT, como o número de dispositivos por endereço é várias vezes superior ao de outros continentes.
Mesmo em países que possuem endereços suficientes, como alguns da Ásia, muitos operadores continuam a usar CGNAT para otimizar recursos, sacrificando a individualidade digital dos utilizadores.
A batalha invisível pela identidade digital
O estudo da Cloudflare expõe uma realidade perturbadora: a identidade online de milhões de pessoas está fundida e indistinguível. O uso massivo de CGNAT cria uma Internet desigual, onde as ações de um só podem condenar centenas.
Detetar e mitigar CGNAT é agora essencial para proteger não só a segurança da rede, mas também a justiça digital global. Enquanto o IPv6 não se tornar verdadeiramente universal, o mundo continuará a viver sob o império de IPs partilhados — um império que castiga sem julgar e protege sem distinguir.
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